Silvana Deolinda

Como mães amamentam nos presídios? ‘É difícil, tratam a gente como bicho’

Uma mulher leva cerca de 650 horas para amamentar um bebê nos seus primeiros 6 meses de vida

Hysa Conrado Colaboração para Universa

Uma mulher leva cerca de 650 horas para amamentar um bebê nos seus primeiros 6 meses de vida – o cálculo, feito pela organização Think Olga, leva em conta a necessidade de amamentação entre oito e 12 vezes ao dia, sete dias por semana. Agora, imagine esse cenário dentro de uma prisão, em que esta mãe não tem nenhuma rede de apoio e se dedica exclusivamente ao ato de maternar, em condições adversas e, por vezes, impróprias.

A motogirl Ilda Aparecida, 46, foi presa sem saber que estava grávida. Além de ter passado todo o período da gestação reclusa, deu à luz e ficou com o filho durante oito meses também nesta condição, no Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha, na Região Metropolitana de São Paulo

“Gravidez na cadeia é muito difícil. Foi horrível. As carcereiras tratam a gente como um bicho na hora de levar para o hospital. Quando voltei para o presídio, foi como se nada tivesse acontecido. Estava com pontos, com dores, e não houve nenhuma compreensão nesse sentido.” Ilda Aparecida, motogirl

Pensar a maternidade como um compromisso, e associá-la à ideia de um trabalho que exige tempo e dedicação, é uma das maneiras de entender como a economia do cuidado recai e sobrecarrega as mulheres, principalmente aquelas que estão em situação de vulnerabilidade.

Foi essa perspectiva que permitiu uma decisão histórica: em agosto deste ano, o STJ (Superior Tribunal de Justiça), reconheceu que os cuidados dispensados ao filho por uma mulher encarcerada podem ser considerados como trabalho para fins de remição da pena.

O relator do caso, o ministro Sebastião Reis Júnior, afirmou que as dificuldades enfrentadas pelas mães reclusas devem ser levadas em conta para garantir equidade de gênero no acesso à remição.

Omissão histórica

Para Cecilia Mello, desembargadora federal aposentada, a decisão do STJ corrige uma omissão histórica.

“Se uma mãe fora do sistema prisional já enfrenta dificuldades em conviver exclusivamente com um bebê recém-nascido, precisando também de cuidado e apoio, imagine essa situação dentro do sistema prisional. Acho que o desafio se multiplica: há o afastamento do convívio, mesmo que seja com outras presas, o isolamento, a falta de cuidado direcionado à mãe, e a dificuldade em lidar com esse novo vínculo e essa nova situação em meio às condições extremamente limitadas.” Cecilia Mello, desembargadora federal aposentada

O STJ seguiu o precedente do TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo), que em abril de 2024 concedeu remição de pena a uma mulher presa que se dedicava exclusivamente à amamentação do filho recém-nascido..

“O fato é que temos uma situação em que a mãe que amamenta, e deveria estar em casa, está no presídio e é separada [das outras presas]. Assim, ela não pode trabalhar. Ou seja, se antes ela trabalhava como parte de uma dinâmica para redução da pena e integração social, enquanto amamenta, ela não tem essa possibilidade”, observa Cecilia.

O avesso da lei

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Imagem: Getty Images

Mulheres grávidas ou mães de crianças com até 12 anos podem ser presas preventivamente e permanecer encarceradas, mas, em tese, isso deveria acontecer raramente. O ideal é que elas sejam mantidas em prisão domiciliar, direito previsto no CPP (Código de Processo Penal).

“Dentro do nosso ordenamento jurídico, existe uma série de dispositivos que buscam evitar o encarceramento de mulheres que tenham filhos pequenos e de gestantes a partir do sétimo mês de gravidez. Mas é fato que isso não acontece”, ressalta Cecilia Mello, que também é sócia do Cecilia Mello Advogados.

Em janeiro deste ano, o ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou a realização de mutirões carcerários para garantir prisão domiciliar a essas mães em todo o país.

“A ideia é, por meio de tal flexibilização, salvaguardar os direitos das crianças que podem ser impactadas pela ausência da mãe. Por meio da medida, a ré permanece presa cautelarmente, mas passa a cumprir a segregação em seu domicílio, de modo a oferecer cuidados aos filhos menores”, apontou o ministro na ocasião.

O caso que motivou a decisão envolvia o habeas corpus de uma mulher, mãe de uma criança de quatro anos, presa preventivamente por tráfico ao portar cinco gramas de crack. O fato de a ação ter chegado ao STF revela que, nas instâncias anteriores, não houve acolhimento nem a devida consideração aos direitos da infância e das mulheres.

Vale lembrar que do total de mulheres privadas de liberdade, um terço cumpre prisão provisória, quando não há condenação, e 62% delas são negras, segundo os dados mais recentes do Sisdepen (Sistema Nacional de Informações Penais).

Vínculo entre mãe e bebê

Um estudo feito pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), publicado em 2022, mostra que uma a cada três gestantes ainda é encarcerada no Brasil.

No caso de Ilda, além de ter sido mantida presa enquanto estava grávida, ela ainda cumpriu sete anos de pena em reclusão longe do filho. Ela ficou com o bebê durante os oito primeiros meses, mas depois precisou entregá-lo à avó. “Quando saí, ele já tinha praticamente sete anos”, lembra.

“Foi muito importante poder passar esses oito meses com ele. Se eu não tivesse passado esse tempo, ele não me reconheceria quando eu voltasse, não saberia que sou a mãe dele. Quando minha mãe levou ele pela primeira vez para me ver na unidade onde eu estava, ele olhou, levou um susto quando me viu e começou a chorar. Era como se dissesse: ‘era ela que eu estava procurando’.” Ilda Aparecida, motogirl

Apesar de ter ficado em uma ala reservada para a maternidade, ela acredita que o sistema carcerário brasileiro não está preparado para receber uma mãe e seu bebê. Logo nos primeiros meses de vida do seu filho, o espaço ficou superlotado e eles enfrentaram um surto de catapora.

“Faltam muitos recursos. Não há médico suficiente, não tem nem para o recluso, quanto mais para a criança. Faltam médicos, medicamentos, estrutura para abrigar adequadamente as crianças, sem contar as doenças e muitos outros problemas”, afirma.

Geralda Álvila, coordenadora da Cooperativa Libertas e integrante da Pastoral Carcerária, destaca que a situação é ainda pior para mulheres estrangeiras encarceradas no Brasil.

“[No caso de mulheres estrangeiras] O juiz anuncia com uma semana de antecedência que, se não houver família, o bebê vai para adoção. E ponto. A mãe pode dizer que não quer, mas o bebê é levado. É uma violência absurda com o bebê e com a mãe que, muitas vezes, nem deveria estar lá. O bebê não cometeu nenhum crime e está ali.” Geralda Álvila, coordenadora da Cooperativa Libertas e integrante da Pastoral Carcerária

Embora o cenário geral ainda revele o descumprimento das prerrogativas, a advogada Cecilia Mello considera a decisão do STJ um passo importante para o início das mudanças.

É uma questão extremamente relevante, não apenas pelo impacto econômico no sistema previdenciário, mas também na forma como os vínculos se estabelecem. A natureza do vínculo entre mãe e filho é essencial para o crescimento e a integridade da criança. Acho que ainda temos muito trabalho pela frente, mas estamos encontrando algumas luzes nessa questão“, ressalta.

E vale para todo crime?

A advogada Cecilia Mello explica que o contexto da prisão precisa ser levado em conta. Antes da condenação, por exemplo, o que se avalia é a situação da mulher em prisão preventiva.

“A ideia é que a prisão preventiva domiciliar seja priorizada quando a mãe tiver filho pequeno ou estiver em fase de amamentação. No caso da falta da condenação, o bem maior que se tem é a relação dela com o filho”, destaca a advogada.

É importante ressaltar que existem requisitos que desautorizam a prisão domiciliar, como prática de violência reiterada, crime grave continuado, interferência no processo, fuga etc.

Há ainda outra questão: a situação pós-condenação. Mesmo por crime violento e após a condenação definitiva, a mãe pode ter a prisão domiciliar. Então, em tese, ela só irá para o presídio se for um crime praticado com violência — nesse cenário, vale a remição da pena pela amamentação.

“Nesse caso, não é sobre a presa em condição de prisão domiciliar, mas sim a detenta amamentando dentro do presídio. A Lei de Execução Penal estabelece o período mínimo de seis meses para que ela permaneça com essa criança, amamentando em ala separada e apartada das demais. Essa amamentação, como a mãe fica sem nenhuma condição de exercer qualquer outra atividade e pela própria natureza do ato, serve para a remição da pena”, explica a advogada.

Então, são dois cenários: a amamentação só vai servir para a remição da pena quando a detenta está no presídio – é ali que vai acontecer a amamentação e o contato com o filho. E a outra hipótese é a da investigada ou denunciada em prisão preventiva, que poderá estar em casa, quando possível, para manter o contato familiar, cuidar e amamentar o filho.

Reportagem publicada no Universa UOL em 23/10/2025

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