A criminalista Cecília Mello diz que em 90 países ainda se pratica a mutilação genital feminina. Portugal tem histórico dessa violência, e crimes como estupro também podem levar à mutilação.
Elizabete Antunes
FotoCerca de 90 países ainda praticam a mutilação genital feminina. Em Portugal e no Brasil, não há histórico dessa violência, mas o estupro pode levar à mutilação LUSA FERREIRA
Mais de 230 milhões de mulheres e meninas foram vítimas de mutilação genital. Os dados alarmantes são da Organização Mundial da Saúde (OMS). A criminalista e desembargadora federal aposentada Cecília Mello, 63 anos, acompanha de perto esta grave violação aos direitos humanos, que é reconhecida mundialmente.
Mesmo Portugal tem histórico de mutilação genital feminina: entre 2015 e o ano passado, 375 mulheres foram vítimas desse crime, segundo a Unidade Local de Saúde Amadora-Sintra (ULSAS). Para Cecília, muitas dessas violações são justificadas “por razões religiosas ou sociais”, e discutir o assunto é uma questão humanitária. De acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), as práticas de mutilação genital feminina são comuns em cerca de 90 países da África, do Oriente Médio, da Ásia e da Europa.
“Esses rituais estão ligados a uma ideia de pureza sexual. Muitas vezes, essa mutilação acontece quando a menina é muito criança, com 5 anos, por exemplo. Dentro desse conceito de pureza sexual, ela é preparada para um casamento futuro”, diz a criminalista, que acrescenta: “Nesse viés, o Brasil começa a ter um olhar mais atento as mulheres que vêm desses países e pedem asilo”.
E não é só. Ela alerta para os casos de violência contra as mulheres que podem resultar em mutilação vaginal. “No Brasil, podem acontecer mais por um ato de violência contra a mulher do que por ordem social ou religiosa. É algo muito sério também e que não é abordado, mas a mutilação genital feminina pode acontecer por violência sexual mesmo, como o estupro”, enfatiza Cecília.

A mutilação genital feminina também é um problema de saúde pública. Números da OMS revelam que os custos relacionados ao tratamento das complicações causadas pela MGF somam 1,4 bilhão de dólares (1,33 mil milhões de euros ou R$ 8 bilhões) por ano aos sistemas de saúde.
“Há um histórico de infecções e até de morte, porque essa mutilação acontece em um ambiente quase tribal, feito por pessoas leigas e que não seguem nenhum protocolo de limpeza. Às vezes, é a própria mãe que faz. Então, é possível deixar a menina numa situação gravíssima”, lamenta a criminalista. “Isso implica também, em alguns casos, tornar a menina não reprodutiva. E, dependendo do que for feito, ela terá problemas de saúde gravíssimos e traumas e transtornos psicológicos para o resto da vida”, frisa.
Controle sobre a mulher
Cecília cita quatro tipos de mutilação genital feminina. “No primeiro deles, tira-se uma parte do clitóris e, no outro, os pequenos lábios. Também tiram os grandes lábios ou fazem uma incisão de maneira a estreitar o canal vaginal”, explica. “Existe a ideia de pureza. É algo que parece bonitinho, mas é horrível. A mulher fica mutilada, sem qualquer sensibilidade sexual. É preparada para servir a um homem, que passa a ter o controle sobre ela”, explica.
No mês passado, o Governo brasileiro renovou, por mais 24 meses, a medida adotada, em 2023, que facilita a concessão de refúgio a mulheres e meninas vítimas de mutilação genital, provenientes de países onde a prática prevalece. A decisão foi aprovada pelo Comitê Nacional Para os Refugiados (Conare), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
As mudanças no Governo, destaca a criminalista, têm um forte impacto sobre o tema no Brasil. “No Governo anterior, mais de direita, onde não se tratava dos direitos das mulheres e meninas, onde os direitos humanos eram deixados em quinto plano, não havia um empenho para abordarmos isso. Não tinha empenho nem para campanha de vacinação, imagina o resto”, relembra. “Agora, temos uma retomada dessas questões, o que eu acho bem importante”, enfatiza.
Crime de lesão gravíssimo
Atualmente, tramitam no Parlamento brasileiro projetos que propõem identificar a mutilação genital feminina como crime de lesão corporal gravíssima. “A criminalização normal seria uma lesão corporal de natureza grave. Se a pessoa morrer, é um homicídio. Mas, em relação à MGF, tem um projeto de lei que transforma esse ato em lesão corporal gravíssima, levando a uma pena mais alta” assinala Cecília.
Na visão dele, isso é importante não só no contexto da mutilação genital feminina, de ordem sócio-cultural, mas em termos de mutilação genital decorrente de violência. “Eu iria até mais longe, porque a mutilação genital pode ser masculina também, principalmente, quando você lida com a repulsa e o preconceito contra a população trans. É uma questão bem séria, onde não é improvável ou impossível que isso aconteça”, avisa.