Silvana Deolinda

Portugal vai deportar imigrantes? Entenda o que está acontecendo

Medida anunciada pelo governo na véspera do início da campanha eleitoral provocou tensão na grande comunidade imigrante que vive no país e uma corrida aos postos de atendimento

Por Lucas Rohan  — De Lisboa

O anúncio do governo de Portugal de que vai notificar 18 mil imigrantes para que deixem o país provocou uma corrida aos centros de atendimento em Lisboa. No sábado (4), um ministro do governo mencionou a medida sem dar detalhes. Disse apenas que são pessoas que já tiveram seus pedidos de legalização negados.

Na manhã desta terça-feira (6), uma fila de centenas de pessoas se formou no balcão de atendimento da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (Aima) no bairro da Mouraria, que reúne uma grande comunidade imigrante de países da Ásia. As pessoas, incluindo várias de nacionalidade brasileira, relataram que estavam em busca de informações presencialmente porque não conseguem contato com a agência.

Jaskaran (com a mochila amarela) trabalha como entregador de aplicativo em Lisboa, Portugal, e estava apreensivo com a notícia de que o governo está apertando o cerco contra a imigração . Materia sobre Portugal. — Foto: Crédito: Lucas Rohan/Valor

Mas, afinal, Portugal vai deportar os imigrantes? Quem são as pessoas que receberão ordem para deixar o país? Há brasileiros nessa lista? Os imigrantes notificados terão mesmo que deixar o país? O Valor conversou com advogadas especialistas na área e consultou a legislação portuguesa para entender o que está acontecendo. A seguir, os principais pontos:

Portugal vai expulsar os imigrantes?

Na prática, sim. A recepção de uma carta convidando o cidadão a se retirar do país sob risco de ser detido e deportado pode ser interpretada como uma expulsão. Imigrantes que não cumprem os requisitos legais para obter autorização ou título de residência terão que deixar o país no prazo de 20 dias estabelecido pela lei portuguesa. No entanto, como o sistema português enfrenta dificuldades até para responder aos pedidos de autorização de residência, há dúvidas sobre como a medida será colocada em prática pela Aima.

“Uma instituição que não está funcionando minimamente vai ter condições de fazer uma força-tarefa de abandono voluntário e afastamento coercitivo? Eu acho que é uma distorção de ordem, colocando o cumprimento de deveres à frente de priorizar o cumprimento das obrigações do Estado e garantir o direito dos cidadãos estrangeiros”, questiona a advogada Lidiane de Carvalho, que é sócia de um escritório em Lisboa que trabalha com o tema.

Quem receberá as notificações para sair do país?

Segundo o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, as pessoas notificadas já tiveram seus pedidos de autorização de residência negados e não cumprem os requisitos para estarem no país de forma legal. São imigrantes que, por exemplo, não pagaram as taxas para emissão do documento ou, em situações mais incontornáveis, foram condenados por crimes em outros países ou em Portugal.

“Eles têm que ser realmente notificados, porque se não forem, não vão conseguir nem se defender. Então, a notificação em si não é algo negativo. É parte do processo administrativo quando uma autorização de residência é negada e sempre aconteceu”, explica Lidiane de Carvalho.

De onde são os imigrantes alvo da medida?

Oficialmente, não há informação. A agência não forneceu informações adicionais e não retornou as tentativas de contato. Mas, em entrevista à imprensa local, o ministro da Presidência disse que dois terços dos 18 mil pedidos de autorização de residência negados são de pessoas da Índia, Bangladesh, Paquistão, Butão e Nepal.

Há brasileiros alvo das notificações?

Sim. Embora os dados não tenham sido divulgados, o jornal português “Público” cita fontes diplomáticas brasileiras que informaram que o número de brasileiros entre os imigrantes que receberão ordem para deixar o país é pequeno.

O Consulado do Brasil em Portugal informou que está cobrando mais detalhes das autoridades locais. A Embaixada do Brasil disse que “tem mantido interlocução sobre o tema com as autoridades portuguesas competentes, bem como com o Ministério das Relações Exteriores, em Brasília” e reforçou que “ainda não foram divulgados dados oficiais sobre quantos cidadãos brasileiros poderão ser afetados por essa medida”.

Cecília Mello, desembargadora federal aposentada e que hoje atua na advocacia, explica que a legislação portuguesa não é muito diferente da brasileira nesses casos. “O imigrante não pode ter sido condenado em qualquer país a um fato que também seja crime na lei portuguesa e que tenha uma pena maior do que um ano”, explica.

“Quem tem motivo para estar preocupado neste momento é quem não preenche os requisitos objetivos, ou seja, quem tem um antecedente criminal nos moldes que a lei impede a residência”, conta Mello. Ela complementa que os requisitos incluem ter meios de subsistência, ter onde morar, estar inscrito na segurança social e ter entrado legalmente no país. O cidadão também não pode ter ocultado das autoridades alguma condição que inviabilizaria o visto.

Os imigrantes que forem notificados terão que deixar o país?

Se não conseguirem provar que cumprem os requisitos para permanência, sim. No entanto, há alternativas, segundo explica Lidiane de Carvalho. A primeira possibilidade é o recurso administrativo.

“Elas vão responder à administração pública dizendo: ‘Olha, afinal eu tinha sim o documento que faltava’, ou ‘eu não recebi nenhuma notificação anterior mandando entregar nenhum documento’, porque descobre-se que, por exemplo, a Aima enviou a notificação para um endereço onde essa pessoa já não vive mais, ou ‘eu nunca recebi o pedido para pagar a taxa para dar continuidade no meu processo’, porque as notificações foram enviadas por e-mail e como alguns casos demoraram três, quatro anos para serem decididos, é natural que alguns e-mails não existam mais”, explica a advogada.

Os imigrantes também podem optar por recorrer à Justiça, mas, neste caso, têm que cumprir a ordem para deixar o país. “Você pode recorrer ao tribunal, mas isso não suspende a decisão de afastamento coercitivo. Você vai ter que deixar o país mesmo tendo entrado no judiciário”, diz ela. Por isso, explica a advogada, é muito importante para quem esteja assessorando essas pessoas verificar se existem questões de direitos humanos envolvidas ou liberdades e garantias potencialmente sendo violadas.

“As pessoas que não cumprem os requisitos estão, de fato, fragilizadas, mas mesmo essas devem buscar as associações ou advogados privados, porque ainda existem muitos caminhos, não muitos, mas existem caminhos para reverter essa notificação, caso a pessoa tenha as condições”, explica a especialista.

Isso já aconteceu antes?

Sim, todos os anos imigrantes que não cumprem os requisitos para ficar no país são expulsos. As notícias de notificação de imigrantes ilegais são frequentes na mídia portuguesa. Nos seis primeiros meses de 2024, por exemplo, foram alvo da medida 575 cidadãos estrangeiros. Desde 2007, cerca de 6 mil pessoas receberam ordem para deixar o país.

A advogada Lidiane de Carvalho disse que a medida “não é nenhuma novidade”. Ela aponta que isso já aconteceu antes e vê manipulação da narrativa em torno do tema no anúncio atual. “Divulga-se esse número como se isso nunca acontecesse, quando sempre aconteceu. É um processo normal”, conta.

Por que a medida foi anunciada agora?

Portugal prepara-se para eleições parlamentares antecipadas, que acontecerão no dia 18 de maio. O anúncio feito pelo ministro ocorreu um dia antes do início da campanha eleitoral. A imigração vem sendo um tema muito debatido no país. A extrema direita acusa os imigrantes por um suposto aumento da criminalidade, o que as autoridades negam, e até pela elevação dos preços dos aluguéis.

Diversas organizações de defesa dos direitos humanos e que prestam assistência para imigrantes alegam que o anúncio do governo tem como objetivo mudar o foco do debate da campanha eleitoral, que, até então, vinha sendo pautada por uma suspeita de tráfico de influência envolvendo uma empresa da família do primeiro-ministro Luis Montenegro (PSD). A oposição mais à esquerda diz que Montenegro busca, com o anúncio, conquistar votos que seriam da extrema direita. O tema rapidamente ganhou as manchetes e foi parar nos discursos políticos. Pedro Nuno Santos, líder do Partido Socialista (PS), hoje na oposição, acusou o adversário de estar em processo de “trumpização”.

“Foi uma forma de colocar um alarmismo e mobilizar um outro eleitorado mais anti-imigração que tem se fortalecido aqui em Portugal nos últimos tempos”, disse ao Valor Ana Paula Costa, presidente da Casa do Brasil, a mais antiga organização que presta apoio aos imigrantes brasileiros no país luso.

Há paralelo com o que Trump está fazendo nos Estados Unidos?

Legalmente, não. “É muito diferente. O Trump deu ordens de deportação sem fundamento. Pessoas que tinham a residência, que tinham green card ou que tinham vínculos familiares, casados com americano, com filho americano etc. Ele encaixa a pessoa dentro dos critérios dele, numa facção terrorista, porque defendeu o território palestino ou seja lá o que for”, comenta Cecília Mello.

Politicamente, é questionável. A proximidade com a eleição e o aumento das denúncias de xenofobia registrados nos últimos anos em Portugal faz supor que há um eleitorado disposto a votar em candidatos que prometam endurecer as regras. O próprio governo atual tomou medidas nesse sentido, acabando com uma alternativa que foi apontada como a responsável pelo aumento da imigração. Através da chamada “manifestação de interesse”, antes, cidadãos estrangeiros podiam chegar em território português com visto de turista para depois requerer a autorização temporária de residência.

Notícia publicada no jornal Valor Econômico em 06/05/2025

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