Silvana Deolinda

Casais homoafetivos e mulheres trans terão proteção da Lei Maria da Penha

A medida garante que homens que sofrem violência doméstica dentro de relacionamentos homoafetivos possam acessar medidas protetivas, como afastamento do agressor, abrigamento emergencial e assistência social e psicológica

Luciano Teixeira – São Paulo

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que a proteção da Lei Maria da Penha deve ser estendida a casais formados por homens gays e a mulheres transexuais e travestis. A decisão reconhece a omissão do Congresso Nacional na regulamentação do tema e representa um avanço na garantia de direitos para a população LGBTQIA+.

A medida garante que homens que sofrem violência doméstica dentro de relacionamentos homoafetivos possam acessar medidas protetivas, como afastamento do agressor, abrigamento emergencial e assistência social e psicológica. Da mesma forma, mulheres trans e travestis passam a ser reconhecidas dentro do sistema de proteção originalmente voltado às mulheres cisgênero.

A ação foi movida pela Associação Brasileira de Famílias HomoTransAfetivas (ABRAFH), que denunciou a exclusão de casais homoafetivos masculinos e mulheres trans das proteções previstas na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). A entidade argumentou que a legislação atual não contemplava todos os casos de violência doméstica e familiar, deixando parte da população desprotegida.

Ao analisar o caso, o relator, ministro Alexandre de Moraes, destacou que a ausência de previsão legal cria uma lacuna na proteção estatal contra a violência doméstica. “A identidade de gênero, ainda que social, é um dos aspectos da personalidade e nela estão inseridos o direito à identidade, à intimidade, à privacidade, à liberdade, e ao tratamento isonômico, todos protegidos pelo valor maior da dignidade da pessoa humana”, afirmou Moraes.

Ainda segundo o ministro, a omissão legislativa compromete a segurança jurídica e impede que vítimas LGBTQIA+ tenham acesso ao suporte necessário. “A não incidência da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos masculinos e às mulheres transexuais e travestis nas relações intrafamiliares pode gerar uma lacuna na proteção e punição contra a violência doméstica, já que esses acontecimentos permeiam a sociedade de forma atroz”, completou.

A Corte também reconheceu que há um contexto social e histórico de subordinação e vulnerabilidade que justifica a ampliação da proteção legal. “Não obstante os avanços legais e institucionais, verifica-se, ainda, a subsistência de um discurso e uma prática que tentam reduzir a mulher – e as pessoas que se identificam socialmente com o gênero feminino ou de alguma forma ocupam esse papel social – perpetuando uma crença estruturalmente machista”, apontou o relator.

O impacto da decisão para a população LGBTQIA+

A ampliação da Lei Maria da Penha para homens gays e mulheres trans representa uma mudança significativa no sistema de proteção contra a violência doméstica no Brasil. Até então, vítimas LGBTQIA+ encontravam dificuldades para obter medidas protetivas, pois a legislação não contemplava expressamente suas realidades.

A decisão do STF reconhece o direito à segurança e proteção dessas populações e cria um precedente importante para futuras discussões sobre equidade no sistema jurídico brasileiro. Além disso, reforça o compromisso do Estado com a garantia de direitos fundamentais, conforme previsto na Constituição.

A determinação também segue diretrizes internacionais, como os Princípios de Yogyakarta, que estabelecem que Estados devem adotar medidas legislativas para prevenir e punir a violência baseada em identidade de gênero e orientação sexual.

Omissão legislativa e o papel do STF

A decisão do Supremo reconhece que o Congresso Nacional falhou ao não regulamentar a proteção da população LGBTQIA+ em casos de violência doméstica. Esse tipo de omissão, conforme apontado pelo tribunal, gera desamparo jurídico e institucional, impedindo que essas vítimas tenham acesso a abrigos, assistência social e psicológica, além de outras medidas protetivas previstas na legislação.

“A comparação entre o consenso nacional e internacional sobre as medidas necessárias para a efetiva proteção contra violência doméstica nas relações homoafetivas da população GBTI+ e a legislação nacional demonstra a existência de significativa omissão constitucional do Poder Legislativo”, pontuou Moraes.

A criminalista e desembargadora federal aposentada Cecília Mello, especialista em temas de inclusão e famílias LGBTQIA+, destaca que o Direito e o funcionamento do sistema de justiça criminal não podem andar a margem do processo de construção da identidade social e sexual dos indivíduos, sob pena de reproduzirem desigualdades baseadas no gênero e dificultarem a aceitação e inclusão social.

“Os índices de violência contra transexuais são conhecidamente alarmantes no mundo e o Brasil, lamentavelmente, desponta com um dos maiores índices. No ponto, a Lei Maria da Penha surgiu diante da necessidade de se coibir e prevenir a violência de gênero no âmbito doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto, ancorada na Constituição Federal, que confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. E a família não tem, absolutamente, a sua formação limitada a casais heteroafetivos ou a formalidades cartorárias”, afirma.

Para a advogada, é indiscutível que o conceito de mulher trazido pela Lei Maria da Penha suplanta o perfil biológico binário (sexo feminino/sexo masculino) e a identificação dos destinatários da Lei deve abranger – amplamente – o conceito de mulher. Assim, a identidade de gênero deve ser definida como a experiência pessoal de gênero, o que pode ou não corresponder ao sexo atribuído de forma biológica; deve haver compatibilidade ao gênero com o qual a vítima se identifica psicologicamente, fisicamente e/ou socialmente”, diz.

Com essa decisão, será necessário um esforço conjunto entre órgãos públicos e entidades da sociedade civil para garantir que a ampliação da Lei Maria da Penha seja implementada de maneira efetiva. Isso inclui a capacitação de agentes de segurança pública, assistentes sociais e operadores do Direito para lidar com as especificidades da violência doméstica dentro da comunidade LGBTQIA+.

Além disso, é essencial que sejam criadas campanhas de conscientização sobre os novos direitos garantidos pela decisão, para que vítimas saibam como buscar auxílio.

A expectativa é que a decisão do STF ajude a reduzir a impunidade em casos de violência doméstica envolvendo homens gays e mulheres trans, além de incentivar o avanço de políticas públicas voltadas à proteção da população LGBTQIA+.

A inclusão dessa parcela da população dentro do arcabouço da Lei Maria da Penha também reforça a ideia de que a proteção contra a violência doméstica deve ser universal e não pode excluir grupos vulneráveis. Esse entendimento marca um novo capítulo na luta por direitos e equidade no Brasil.

Agora, caberá ao Congresso criar mecanismos legais para regulamentar essa proteção de forma clara e abrangente. Caso isso não ocorra, a decisão do STF já tem força vinculante e deve ser aplicada em todo o país.

“Diante dessa lacuna, o Poder Judiciário tem sido acionado repetidamente para interpretar o alcance da lei com base na Constituição Federal, em tratados internacionais ratificados pelo Brasil e em outras fontes jurídicas. Embora a jurisprudência majoritária já reconheça o critério psicológico como o mais adequado para a definição de gênero, a ausência de uma norma específica vinha dificultando o pleno reconhecimento dessas garantias constitucionais. A decisão do STF reconhece exatamente a omissão do Poder Público no sentido de viabilizar o exercício de um direito”, destaca Cecília Mello.

Notícia publicada no site Lex Legal Brasil em 24/02/2025

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