Grande parte do assédio ocorre em espaços privados ou sob relações de poder assimétricas
Historicamente, a Justiça se baseava em provas tradicionais, mas houve avanços recentes
Camila Zatti Araponga, especialista em compliance trabalhista e direito do trabalho do escritório Bruno Freire Advogados
Nos últimos anos, a Justiça do Trabalho brasileira vem avançando na proteção de trabalhadores vítimas de assédio moral e sexual, adotando o julgamento pela perspectiva de gênero. Essa mudança não cria privilégios, mas corrige desigualdades históricas que dificultavam responsabilizar empresas e agressores, promovendo decisões mais justas e equilibradas.
O conceito parte do reconhecimento de desafios enfrentados principalmente por mulheres, como a descredibilização da sua palavra, a naturalização de comportamentos abusivos e a dificuldade de denunciar situações de assédio. Historicamente, a Justiça baseava-se em provas tradicionais, ignorando que grande parte do assédio ocorre em espaços privados ou sob relações de poder assimétricas.

Imagem de 2017 mostra cena de um curso para homens acusados de assédio sexual no fórum da Barra Funda, em São Paulo – Flavio Florido/Folhapress
Com essa perspectiva, os tribunais consideram: a palavra da vítima como prova válida, mesmo sem testemunhas diretas; os impactos emocionais e psicológicos sofridos; o contexto estrutural de desigualdade; e a desconstrução de estereótipos que questionam a vítima, como: “Por que ela demorou a denunciar?”. Essa abordagem segue o Protocolo do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que orienta magistrados a analisar relações de poder e dinâmicas de gênero em cada caso.
Dados recentes indicam que, entre 2020 e 2024, a Justiça do Trabalho recebeu mais de 33 mil casos de assédio moral e sexual, refletindo tanto a persistência do problema quanto o aumento da confiança das vítimas na efetividade das decisões judiciais. Um exemplo emblemático ocorreu em 2025, quando o TRT-2 (Tribunal Regional do Trabalho da segunda região) majorou indenização de R$ 8 mil para R$ 30 mil em um caso de assédio sexual, reconhecendo o efeito cumulativo do abuso e a dificuldade de comprovação tradicional.
Além do aspecto judicial, a perspectiva de gênero reforça a necessidade de compliance trabalhista eficaz. Empresas devem adotar medidas preventivas: canais seguros e anônimos para denúncias, treinamentos sobre diversidade e assédio, políticas claras e práticas de proteção às vítimas. Organizações que ignoram essas medidas aumentam riscos legais e danos à reputação.
Para advogados e advogadas, a mudança exige maior sensibilidade e aprofundamento na forma de estruturar casos e apresentar provas, reconhecendo o contexto de gênero e os impactos emocionais do assédio. Essa prática contribui para decisões mais equilibradas, garantindo que denúncias não sejam minimizadas por ausência de “provas tradicionais”.
Embora os avanços sejam significativos, os desafios persistem. É necessária a formação contínua de magistrados e servidores, além da criação de ambientes judiciais acolhedores, capazes de proteger e incentivar vítimas a denunciarem abusos. A mudança também exige conscientização das empresas e da sociedade sobre a gravidade do assédio e a importância de políticas preventivas.
O julgamento pela perspectiva de gênero é mais do que uma abordagem jurídica: é um novo paradigma de justiça, que transforma o ambiente de trabalho, responsabiliza agressores e protege os vulneráveis. Ele demonstra que a igualdade de gênero não pode ser apenas um ideal, mas uma prática concreta aplicada diariamente pela Justiça do Trabalho, construindo espaços profissionais seguros, equitativos e respeitosos para todos.
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço Políticas e Justiça da Folha de S. Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Camila Zatti Araponga foi “Brave”, de Sara Bareilles.
Artigo publicado na coluna Políticas e Justiça, da Folha de S.Paulo, em 28/10/2025




